(Este é um dos tais posts salvos do outro blog da Asa Negra, tendo sido pela primeira vez publicado em 11 de Fevereiro de 2010, sendo portanto de ressalvar que as referências temporais no texto estão desfasadas da actualidade.)
No mês passado saiu a primeira compilação duma das novas séries da DC Vertigo, The Unwritten. Esta série conta com a participação duma equipa já “clássica” da editora, Mike Carey e Peter Gross, responsáveis por grande parte da série Lúcifer, um premiado spin-off de Sandman e mais uma vez se vem a comprovar que é uma equipa vencedora.
The Unwritten conta a história de (dois) Tommy Taylor, por um lado, uma personagem dos mais bem sucedidos livros fantásticos infanto-juvenis (uma espécie de Harry Potter elevado à quinta-potência do sucesso) criado por Wilson Taylor (que desapareceu após a publicação do 13º volume) e por outro, o filho desse autor que em criança inspirou a personagem e que agora na idade adulta continua perseguido pelo sucesso do seu correspondente virtual, o que o desagrada mas por outro lado se mostra incapaz de evitar, vivendo às custas desse sucesso. O desaparecimento do seu pai deixa um ressentimento e um cheiro a mistério na sua vida que juntamente com as incertezas quanto à sua origem real o vão lançar a caminho da auto-descoberta e do fantástico, sempre em redor da literatura e da fronteira entre a ficção e a realidade.
Numa perspectiva mais abrangente, The Unwritten é uma história sobre o poder do texto e da palavra escrita sobre o mundo real, sendo estes capazes de moldar a realidade através do seu peso e da sua influência e de como esse poder pode ser condicionado por alguns para manipular o mundo a seu interesse. O poder mágico e sobrenatural da palavra escrita para criar mundos fantásticos é assim também usado como uma metáfora para a capacidade real que variadas obras ao longo dos séculos tiveram para moldar a imaginação, os sonhos e a vontade de determinadas gerações, assim como a capacidade que algumas obras tiveram para mudar a história da humanidade, gerando novas maneiras de pensar e de agir, impulsionando movimentos e revoluções ou tornando realidades distantes muito mais próximas. A palavra escrita criou o nosso mundo real, ficção a ficção.
O enredo de Mike Carey toma estas premissas e segue desenvolto através dos mais variados estilos e meios: a vida do Tommy Taylor “real” corre entremeada por excertos da vida literária do Tommy Taylor “ficcional” e a ela juntam-se aparições das mais recentes aventuras da palavra escrita, a Internet, por meio de blogues e chats. Esta primeira compilação traz ainda uma história que nos relata a vida do autor Rudyard Kipling, que nos afasta da história de Tommy, como quem faz Zoom Out num mapa, para nos mostrar que as raízes deste mistério e o braços desta conspiração são muito mais abrangente do que o esperaríamos.
A arte de Peter Gross enquadra-se perfeitamente na história. O seu estilo é um dos que já é imagem de marca no universo mágico e fantástico da Vertigo que rodeia a série Sandman (ainda que aqui não haja uma ligação directa), criando ambientes um pouco lúgubres e desencantados que imprimem um gosto real ao elemento fantástico, como se a magia se tornasse ainda mais mágica por aparecer nos sítios onde menos se espera e que quase sempre também são os sítios que mais precisam dela.
Também mágicas são as capas de Yuko Shimizu, sendo que a série estreou-se com aquela que talvez seja a minha capa preferida do ano passado, pela elegância e simbolismo com que explora o conceito da história. Nela vemos o protagonista enredado num mundo caótico de letras e palavras ainda não escritas, preso num universo em desordem que apenas pelo texto poderá ganhar solidez real e organização. E é através do protagonista, no fundo um messias, e do seu sangue, do seu suor e do seu sofrimento que o mundo ainda não escrito se tornará escrito e pleno.
The Unwritten é sem dúvida uma série a seguir, para mim uma das melhores das mais recentes séries da Vertigo.